segunda-feira, 12 de abril de 2010

Por obséquio, quando começa a primavera?





"AUTOR. - Ângela tem toda a iluminação feérica - e ao mesmo tempo que se habitua lenta e muda e majestosa e delicadíssima e fatal - em ser mulher - é modesta demais para sê-lo, é fugaz demais para ser definida. Ela me contou que na rua dirigiu-se a um guarda - e explicou que assim fez porque ele devia saber das coisas e ainda por cima estava armado, o que infunde respeito a ela. Falou assim para o guarda: o senhor pode me informar, por obséquio, quando começa a primavera?
Ângela é doida. Mas tem uma lógica matemática na sua aparente doidice. E se diverte muito, a escandalosa. Aguça-se demais e depois não sabe o que fazer de si. Que se dane. Entre o "sim" e o "não" só há um caminho: escolher. Ângela escolheu "sim". Ela é tão livre que um dia será presa. "Presa por quê?" "Por excesso de liberdade". "Mas essa liberdade é inocente?" "É". "Até mesmo ingênua". "Então por que a prisão?" "Porque a liberdade ofende".


[...]


ÂNGELA. - De súbito a estranheza. Estranho-me como se uma câmera de cinema estivesse filmando meus passos e parasse de súbito, deixando-me imóvel no meio de um gesto: presa em flagrante. Eu? Eu sou aquela que sou eu? Mas isto é um doido faltar de sentido! Parte de mim é mecânica e automática - é neurovegetativa, é o equilíbrio entre não querer e o querer, do não poder e de poder, tudo isso deslizando em plena rotina do mecanicismo. A câmera fotográfica singularizou o instante. E eis que automaticamente saí de mim para me captar tonta de meu enigma, diante de mim, que é insólito e estarrecedor por ser extremamente verdadeiro, profundamente vida nua amalgamada na minha identidade. E esse encontro da vida com a minha identidade forma um minúsculo diamante inquebrável e radioso indivisível, um único átomo e eu toda sinto o corpo dormente como quando se fica muito tempo na mesma posição e a perna de repente fica "esquecida".

Eu sou nostálgica demais, pareço ter perdido uma coisa não se sabe onde e quando."


Trechos de "Um sopro de vida" de Clarice Lispector.
Uma ilustração minha.

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